Crescimento de empresas privadas leva biscoito Doritos e sabonete Palmolive a Cuba, mas poucos têm dinheiro para comprar
08-27 HaiPress
Barman serve bebidas no restaurante landmkar La Carreta em Havana,em 10 de fevereiro de 2024 — Foto: Eliana Aponte Tobar/The New York Times
RESUMO
Sem tempo? Ferramenta de IA resume para vocêGERADO EM: 27/08/2024 - 04:31
Crescimento e desafios do setor privado em Cuba
O crescimento das empresas privadas em Cuba traz produtos antes desconhecidos,mas acessíveis apenas para poucos devido a salários baixos. Empreendedores como Aldo Álvarez da Mercatoria enfrentam incertezas sobre o futuro do setor privado. A abertura do governo para micro e pequenas empresas traz mudanças,porém com restrições,desafios e disparidades sociais. O setor privado cresce,mas enfrenta críticas e incertezas sobre seu papel e relação com o governo. Os desafios econômicos e a busca por soluções econômicas e sociais continuam a moldar o cenário cubano.O Irineu é a iniciativa do GLOBO para oferecer aplicações de inteligência artificial aos leitores. Toda a produção de conteúdo com o uso do Irineu é supervisionada por jornalistas.
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Em Cuba,país onde há pessoas que passam fome,hoje é possível encontrar alimentos que até poucos anos atrás ninguém conhecia,como xarope de chocolate da marca Hersey's,molho de tomate Hunts,feijão preto Goya,sazón completo Badia,óleo em spray Pam,biscoitos María,pacotes de Doritos,sorvetes Ranchero ou latas de ervilhas,milho e vegetais mistos da linha Country Barn. Assim é o catálogo da Mercatoria,empresa de distribuição varejista e atacadista de produtos de limpeza,higiene,alimentos e bebidas,que tem seus armazéns em Luyanó,Havana,e seus escritórios no bairro central de Vedado. Quem mora em Cuba e não tem dinheiro ou vive com seu salário provavelmente não sabe disso,assim como provavelmente não sabe que existe um lugar que oferece lenços umedecidos Wet Ones,protetor solar Banana Boat,sabonete líquido Palmolive e kits de escova de dentes Colgate. E não,não se trata de outro país,o capitalismo não chegou,nem os EUA o invadiram.
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Aldo Álvarez,o proprietário da Mercatoria,parece um cara carismático,se move com graça. Sua barba é bem aparada,seus óculos são pretos e ele tem o jeito e os gestos de um homem de negócios. Ele é advogado e,durante vários anos,prestou serviços a empresas estrangeiras que operavam no mercado cubano. Assim aprendeu sobre o mundo das importações,do comércio e dos contratos. Foi morar na Espanha há algum tempo e retornou a Cuba em 2018. Três anos depois,quando o governo de Miguel Díaz-Canel anunciou a inclusão de "novos atores" na economia cubana e,portanto,a abertura de micro,pequenas e médias empresas privadas conhecidas como MPMEs (ou "Mipymes",em espanhol),Álvarez se tornou um empreendedor.
— Vi uma oportunidade em algo que eu sabia fazer,algo em que eu tinha experiência e que poderia desenvolver — disse.
A Mercatoria começou com um projeto de cinco pessoas que distribuíam produtos para restaurantes ou cafeterias. No início,eles importavam principalmente da Espanha ou do México.
— Estamos falando de meados da pandemia,onde era difícil encontrar produtos,onde as empresas estavam enlouquecidas à procura de suprimentos,havia muita escassez — explicou.
Foi aí que ele identificou a oportunidade de negócio para atender às necessidades dos cubanos com poder aquisitivo na época. Na Mercatoria,eles compram o que podem pagar. De acordo com Álvarez,ele tem clientes de todos os tipos: "Há aqueles que ainda se alimentam com a caderneta de abastecimento e preenchem sua dieta com uma compra específica. Há aqueles que recebem uma renda ou trabalham no setor privado e vão à loja particular do bairro".
Desde sua abertura,o catálogo da Mercatoria cresceu e seus clientes aumentaram. Seus micro-ônibus distribuem suprimentos para cafés,pontos de venda,lojas ou centros de processamento em toda Havana. Eles até montaram sua própria cafeteria,seu próprio centro de processamento,uma padaria e estão terminando uma pequena indústria de massas.
Clientes da Deshidratados Habana,uma empresa privada de alimentos desidratados em Havana,em 12 de fevereiro de 2024 — Foto: Eliana Aponte Tobar/The New York Times
Se você perguntar a Álvarez se não lhe passou pela cabeça que amanhã o governo cubano tirará seu negócio,que a Mercatoria desaparecerá e que,da noite para o dia,ele não será mais um empresário,ele dirá que esse cenário obviamente "gera muita incerteza". Isso não seria incomum. Em anos anteriores,em meio a outras crises,o governo recorreu aos autônomos,aos empreendedores,aos empresários para cuidar do que o Estado não podia. Então,ao menor alívio econômico,ele tirava as licenças de muitos deles.
No início do Período Especial da década de 1990,Fidel Castro,fechado desde o início da Revolução a qualquer coisa que se assemelhasse à propriedade privada,teve de autorizar a abertura de paladares e algumas empresas diante do impacto da perda da ajuda soviética. As famílias cubanas vendiam alimentos em suas salas de estar sob inúmeras restrições. Raúl Castro,durante seu mandato,reabriu o espaço para o trabalho autônomo. Alguns anos depois,apesar do dinamismo que esse setor injetou na economia,as licenças foram novamente restringidas.
Em 2021,apenas um mês após os protestos de 11 de julho,em que os cubanos saíram às ruas cansados da crise econômica e da falta de liberdades,Díaz-Canel anunciou a abertura de micro e pequenas empresas,acompanhada de uma lista de restrições,proibições e regulamentações,deixando claro que o principal ator da economia cubana era a empresa estatal socialista. Diante desse panorama,por que alguém agora iria querer apostar na abertura de uma empresa em Cuba?
Álvarez reconhece que os empreendedores cubanos são "empreendedores extremos",fazendo o que podem com o que têm. Mas ele quer ficar em Cuba. Ele acredita que há novas oportunidades que,apesar das idas e vindas,o setor privado cubano ganhou nos últimos 14 anos.
— Ainda estamos muito amarrados,mas ainda há oportunidades de desenvolvimento no que é seu país,e há pessoas que estão fazendo isso,apostando na possibilidade de participar economicamente. É preciso estar disposto a tentar em Cuba — disse ele,acrescentando: — Mas será que o setor privado pode perder parte do que ganhou nos últimos três anos? Talvez. A pergunta que sempre faço a mim mesmo é: Isso pode ser revertido e até que ponto?
'Propriedade privada' em Cuba?
O que muitos proprietários de MPMEs e economistas consideram uma mudança importante é o fato de que,pela primeira vez,a Constituição fala de "propriedade privada",quando em todos os anos da Revolução os governantes evitavam essa palavra. Até agora,Cuba evitava falar sobre o setor privado,disfarçando-o de "setor não estatal","empreendedorismo" ou "cuentapropismo" (termo cubano para trabalhador não-estatal e que vive do seu próprio negócio). De acordo com o economista Ricardo Torres,ex-pesquisador do Centro de Estudos da Economia Cubana e professor da Universidade Americana em Washington,essa é "a mudança mais importante que ocorreu em Cuba em muito tempo".
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Outra novidade com a chegada das MPMEs foi que o governo permitiu que os agentes econômicos tivessem personalidade jurídica,o que lhes garante segurança jurídica e vantagens.
— Nunca tivemos personalidade jurídica — diz Darién García,fundador da Gestoría Confías,uma MPME localizada no oitavo andar do mítico edifício Focsa,que oferece serviços de contabilidade e acompanhamento a gerentes de empresas. — Antes,quando se era autônomo,era muito mais fácil assumir o controle de uma empresa,mas com a personalidade jurídica é mais complicado. Criar uma empresa registrada em um cartório e protegida por uma estrutura legal de negócios coloca você em uma posição em que está falando em igualdade de condições com o restante do setor jurídico.
As pessoas concordam que,em Cuba,as empresas não têm mais nome,são todas chamadas de MPMEs. Se alguém precisa de sabão ou de arroz,vai à MPME; se você perguntar onde comprar um milkshake de goiaba,ele lhe dirá na MPME da esquina. Mas também há MPMEs que fabricam sistemas de energia solar,arranjos de flores,compram móveis do tipo IKEA ou drones,ou MPMEs que são pistas de boliche,empresas de piscicultura,salas de jogos,pequenos hotéis,lojas que vendem peças de ônibus ou automóveis e cafeterias que imitam a Starbucks.
De acordo com dados do Ministério da Economia e Planejamento,em junho,havia 11.046 entidades privadas em Cuba,empregando cerca de 297 mil trabalhadores,mais de 15% da força de trabalho do país. Em 2023,o setor privado importou mais de US$ 1,3 bilhão e hoje contribui com 14% do PIB.
— Há MPMEs de todos os tipos — diz García,que trabalha para criar outras MPMEs para clientes de empresas comerciais,construtoras e negócios ligados ao setor gastronômico.
A Mercatoria,por exemplo,é um de seus clientes. Agora mesmo,disse ele,não é um bom momento. Está criando apenas três MPMEs,mas em outros meses recebeu até doze solicitações em um mês.
Clientes fazendo compras na Home Deli,uma mercearia privada em Havana,em 9 de fevereiro de 2024 — Foto: Eliana Aponte Tobar/The New York Times
Os cubanos mergulharam de cabeça na abertura de empresas privadas quando,em maio,o governo de Joe Biden anunciou novas medidas para beneficiar esse setor na ilha,revertendo muitas das restrições impostas pelo ex-presidente Donald Trump. O republicano havia revertido a política de abertura de Barack Obama,que se reuniu em 2016 com empresários e empreendedores cubanos durante sua visita a Cuba. Na reunião,ele lhes perguntou: "O que vocês precisam para progredir?",e lhes disse que o futuro da economia cubana "avançará com o trabalho de vocês". O mandato de Raúl Castro,marcado pelo restabelecimento das relações com os Estados Unidos,viu o setor privado decolar.
— A era Obama,em nível global,e em resposta à Grande Recessão,deu grande ênfase à promoção do empreendedorismo — explicou Ricardo "Ric" Herrero,diretor executivo do Grupo de Estudos de Cuba,uma organização que,dos EUA,apoia o empreendedorismo em Cuba. — Isso coincidiu com a abertura do setor não estatal em Cuba,que ainda operava com base em licenças,sem personalidade jurídica,mas que gerou muitas expectativas de mudança. Especula-se que havia muita resistência interna a essas aberturas por parte de Raúl Castro,havia resistência à abertura da economia porque eles viam uma ameaça ao seu monopólio.
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Embora Trump tenha anulado muitos dos avanços de Obama na reaproximação com Cuba,as expectativas de que Biden retomasse suas políticas de abertura não foram tão aceleradas nem tão eficientes quanto se esperava. Há alguns meses,entre outras coisas,a administração democrata ampliou a possibilidade de os empresários cubanos abrirem contas em bancos norte-americanos,autorizou as transferências U-turn (que começam e terminam fora dos EUA) e se comprometeu a facilitar a comunicação via Internet.
As medidas de Biden foram particularmente atacadas por parte da ala conservadora cubano-americana. Em Cuba,os empresários as receberam com ceticismo.
— Eu já fui mordido pelo cachorro de Obama — diz García,questionando: — Então você está fazendo o anúncio quatro meses antes das eleições? Vamos esperar até depois das eleições e então veremos. Ainda há pessoas com contas congeladas nos Estados Unidos,muitos correram para fazer contas bancárias quando Obama chegou,e quando Trump chegou eles congelaram as contas,colocaram multas,então que banco vai se atrever a fazer essa operação agora? E que pessoa vai se atrever a fazer essa operação com que banco? E se Trump ganhar?
'Bodes expiatórios' do Estado
Em 2018,o Grupo de Construção Pilares deixou de ser identificado como autônomo para se tornar uma empresa de médio porte em 2021,a categoria máxima permitida em Cuba para empresas privadas. Com uma equipe de engenheiros,arquitetos e operadores,em apenas seis anos eles prestaram serviços de construção para mais de 100 projetos em todo o país.
A engenheira Yulieta Hernández Díaz,38 anos,é sua fundadora. Para ela,a mudança mais significativa desde que deixou de ser uma trabalhadora autônoma e se tornou uma empresária está na estrutura regulatória.
— Depois de setembro de 2021,deixamos de ter uma lista de atividades permitidas e passamos a ter uma lista de atividades proibidas. Isso abriu uma ampla gama de possibilidades e oportunidades para o empreendedorismo como agentes econômicos privados em Cuba — explicou.
Trabalhadores cortando madeira na oficina de produção da Dforja Creations,uma empresa privada de móveis nos arredores de Havana,em 10 de fevereiro de 2024 — Foto: Eliana Aponte Tobar/The New York Times
Essa também é uma das críticas à iniciativa do governo,que restringe mais de 100 atividades,incluindo a formação profissional,a limitação de apenas 100 funcionários por empresa,a impossibilidade de investimento estrangeiro no setor privado ou a impossibilidade de comprar imóveis e possuir terras. Com o passar do tempo,o governo acrescentou restrições. Um anúncio recente listou 125 novas atividades econômicas que são proibidas no país,como a fabricação e o reparo de equipamentos médicos,a fabricação de produtos farmacêuticos,a publicação e a composição de livros,a produção audiovisual e algumas atividades relacionadas ao transporte.
Hernández é afetado pela impossibilidade de ter mais de cem trabalhadores.
— O setor de construção exige grandes equipes de pessoas — disse,acrescentando: — Essa é uma questão muito sensível em Cuba. O limite de cem funcionários foi criado para evitar a concentração de capital e dos meios de produção,um princípio do socialismo. Mas isso limita o crescimento das empresas no país.
Cuba voltou-se para a abertura de MPMEs em meio ao que é,até hoje,provavelmente a maior crise econômica da história da revolução. O país encerrou 2023 com uma taxa de inflação de 30% no final do ano,uma economia que encolheu 2% e uma desvalorização da moeda de mais de 50% em relação ao dólar e ao euro no mercado informal. São as empresas privadas que agora estão assumindo o que o Estado cubano não consegue. O pão poderia ser o maior desses símbolos,um produto que durante anos o governo garantiu e racionou por meio da cartilha de fornecimento. Hoje,as MPMEs importam a farinha que o Estado não pode comprar por falta de dinheiro ou falta de confiança nos vendedores e fazem pão nos fornos que o Estado não tem. Os cubanos sempre culparam as novas empresas privadas pelos altos preços atuais dos produtos básicos,e o governo se aproveitou dessa narrativa.
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Apesar do fato de o setor privado ser,muitas vezes,um substituto do governo,o economista Torres afirma que o governo usa o setor privado como "bode expiatório". Não raro,os líderes culpam essas empresas pelos preços altos.
— Os empresários,que precisam investir,aumentam seus preços. Quem é que vai enfrentar o cidadão? O empresário. E quem causou o desastre? O Estado,com suas políticas ruins. Os preços não estão subindo por causa do dono da cafeteria,mas porque há decisões econômicas ruins por trás disso. E o governo está se aproveitando desse clima para usá-lo contra as MPMEs e o setor privado — explicou o economista.
O governo cubano,por outro lado,negou em mais de uma ocasião que sua intenção seja prejudicar o setor privado.
— Quero reiterar que não há e não haverá uma caça às bruxas contra as MPMEs privadas,como alguns afirmam,manipulam ou sugerem— disse Miguel Díaz-Canel em um discurso no qual falou contra a "falta de controle,ilegalidades,evasão fiscal,especulação e fraude".
Herrero também afirma que há um "padrão duplo" na forma como o governo se relaciona com as empresas privadas,o que ele atribui à falta de moeda estrangeira que o Estado está enfrentando.
— O fluxo de moeda estrangeira está chegando agora por meio do setor privado porque não há nenhum fornecedor no exterior que queira vender para o Estado. A concorrência por moeda estrangeira foi gerada e agora o governo está tomando cada vez mais medidas para capturá-la — diz ele,acrescentando: — O que estamos vendo no setor privado é que,quando o governo dificulta muito as coisas para eles,eles vão embora.
A essa altura,o que o governo poderia fazer para fortalecer o setor privado e não enfraquecê-lo ainda mais? Os empresários concordam que é necessário haver mais participação na economia,uma abertura ao investimento estrangeiro,a possibilidade de alugar imóveis,arrendar terras e,sem dúvida,incentivar a produção para substituir as importações.
— O que Cuba precisa hoje é produzir — argumenta García,continuando: — Muitas MPMEs têm a produção como seu objetivo social,mas não há incentivos. O país não tem dinheiro,não pode dar ajuda financeira,mas tem impostos em mãos,poderia tirar os impostos de quem produz.
Ric Herrero,por sua vez,acha que os empresários precisam ter acesso a capital,a fornecedores no exterior,a expandir suas conexões e contatos e a possibilidade de receber orientação.
Disparidades sociais e econômicas
Mas nesse país onde se fala de um setor privado,de empresas em crescimento e de importações que chegam diretamente do sul da Flórida,também há pessoas que não têm condições de comprar produtos básicos. Em uma ilha em que o salário mínimo é de 2.100 pesos cubanos (US$ 88 ou cerca de R$ 422,5),há reclamações sobre uma caixa de ovos que custa até 2.700 pesos cubanos ou um pacote de sal que custa mais de 500.
Em sua busca por soluções,o governo anunciou em julho que limitaria o preço de produtos básicos de alta demanda,como frango,óleo,leite em pó,salsichas e detergente,algo que irritou particularmente os empresários.
E o problema persiste. Aos 31 anos,Yadiel Paz "não tem escolha" a não ser comprar das MPMEs que estão florescendo na Venezuela,um município no centro da ilha.
— O Estado não tem mais o suficiente para abastecer as pessoas com alimentos — disse ele,acrescentando: — Mas,às vezes,nem consigo comprar. Os preços são muito altos,tão altos quanto os do mercado negro. Nenhum salário é suficiente neste país.
Restaurante La Carreta em Havana,que já foi propriedade do governo e agora foi reaberto como um negócio privado por dois parceiros recentes um cubano-americano e um empresário local — Foto: Eliana Aponte Tobar/The New York Times
A situação acelera a desigualdade social que o governo há anos tenta esconder sob o pretexto de igualitarismo. Carros da Tesla foram vistos circulando pelas ruas de Havana,empresários cubanos importaram veículos no valor de mais de US$ 20 milhões dos EUA,mas ao mesmo tempo não há combustível para facilitar a locomoção daqueles que usam o transporte público.
— Há pessoas que estão ganhando dinheiro e há aquelas que passam muita fome — observou García,acrescentando: — A diferença não é apenas entre os proprietários de MPMEs e os outros,mas também entre os trabalhadores de MPMEs e a população. Isso está afetando muito a migração de mão de obra. Quase não há trabalhadores no setor estatal. E isso também está afetando a saúde pública,a educação e os serviços de todos os tipos.
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— Há uma realidade: Cuba está mudando,o modelo não é o mesmo — observou o economista Torres. — O setor privado tem um espaço maior na economia do que antes. Há também muito mais espaço no mercado. Cuba parece estar se aproximando mais do modelo russo do que do modelo chinês,com um setor privado que é subsidiário do Estado. A grande questão é para onde Cuba está indo,para qual modelo está indo?
'Sementes do futuro'
A chegada das MPMEs em Cuba foi acompanhada de uma série de perguntas: quão privadas elas são; são um mito,como afirmou a congressista republicana da Flórida,María Elvira Salazar; ou são uma fachada que enriquece o regime de Castro e Díaz-Canel,como afirmou seu colega,o senador Marco Rubio?
O fato de que muitas das novas empresas estão relacionadas a pessoas de Miami,ou que são empresários cubanos dos EUA que estão importando grandes quantidades de seus produtos pela primeira vez por meio de uma importadora estatal,incomodou muita gente. As MPMEs também foram alvo de críticas porque,de acordo com algumas pessoas de ambos os lados do Atlântico,elas estavam nas mãos dos governantes e de seus parentes. A mídia informou que Lisa Titolo Castro,filha de Mariela Castro e neta de Raúl Castro,era a proprietária do Gaia Mercado,uma marca que possui um mercado on-line e uma cafeteria. Também se descobriu que a Mipyme Merca-Max SURL,que comercializa frango dos EUA,era de propriedade de Yoandy Riverón,um conhecido agente da Segurança do Estado.
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García disse que,há empresas ligadas a altos líderes do governo,mas isso não significa que todas sejam.
— Dizer a você que elas não existem é uma mentira — afirmou,acrescentando: — Criamos mais de 250 empresas,das quais sabemos que menos de dez estão ligadas a figuras do governo. Essa pode ser a proporção. No final das contas,todos aqui têm um relacionamento com o governo. Estou em instalações alugadas pelo governo,tenho de pagar o telefone à (estatal) ETECSA,mas minha empresa é cem por cento minha e,como a minha,há muitas que são cem por cento privadas,sem nenhuma relação com os filhos dos líderes ou com os líderes.
Torres,descarta o setor privado como "um mito".
— Há todos esses argumentos que dizem que,se for usado pelo governo cubano,diz-se que o governo está usando as MPMEs para escapar das sanções. Pode ser que sim,mas dizer que o setor privado é um mito,não creio que corresponda à realidade — acrescentou o economista. — O fato de o governo querer instrumentalizar o setor privado para se beneficiar é uma coisa. Mas isso não significa que o setor privado não esteja organicamente separado do Estado.
Para García,a melhor coisa que Cuba tem hoje "é o fato de não ter nada,de ser um campo virgem". Os economistas concordam que isso não é suficiente e que a Cuba do futuro deve ter um setor privado muito maior e mais dinâmico.
— Será que isso vai acontecer no dia seguinte às mudanças políticas que muitas pessoas desejam que aconteçam? — afirmou Torres. — Não,é um processo e não começa nesse dia. Vejo que a semente do que será o futuro está sendo lançada aqui.