Cientistas são condenadas após refutarem nutricionista que associa diabetes a vermes
09-20 HaiPress
À direita,as cientistas Ana Bonassa e Laura Marise; à esquerda,o nutricionista Andre Luis Lanca — Foto: Deborah Trettola e Reprodução/Instagram
RESUMO
Sem tempo? Ferramenta de IA resume para vocêGERADO EM: 20/09/2024 - 04:00
Cientistas condenadas por refutar teoria sobre diabetes
Cientistas são condenadas por refutar teoria de nutricionista sobre diabetes causado por vermes. Justiça determina indenização e remoção de conteúdo. Entidades científicas e Conselho Federal de Farmácia expressam apoio às profissionais e alertam sobre desinformação.O Irineu é a iniciativa do GLOBO para oferecer aplicações de inteligência artificial aos leitores. Toda a produção de conteúdo com o uso do Irineu é supervisionada por jornalistas.
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Uma postagem na internet,que associava a diabetes a parasitas no pâncreas,virou caso de Justiça em São Paulo. Tudo começou quando o nutricionista Andre Luis Lanca,que se denomina "Dr Lanza" nas redes sociais,defendeu desparasitação como tratamento para a síndrome metabólica. Fundadoras do canal de divulgação científica "Nunca vi 1 cientista",a bióloga Ana Bonassa e a farmacêutica Laura Marise foram condenadas na 1ª Vara do Juizado Especial Cível do estado depois de refutarem a tese do profissional de saúde.
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O judiciário paulista condenou as cientistas,em primeira instância,por danos morais. Na sentença,a juíza responsável pelo processo alega que as duas devem indenizar Lanca em R$ 1 mil,além de retirar do ar o conteúdo em que o contradiziam.
Em junho de 2023,as pesquisadoras veicularam um "vídeo informativo",segundo a sentença,nos perfis que mantêm nas redes. Na gravação,Ana explicava o que era a doença e afirmava,"com todas as letras",que "diabetes não é causada por verme".
Para a magistrada,o nutricionista foi submetido a "vergonha e tristeza" e teve os dados de sua antiga conta pública no Instagram divulgados "sem autorização" em "rede social de amplo alcance".
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Mais do que isso,consta no documento que a atitude resultou em uma “mancha” na imagem de Andre e,consequentemente,em prejuízos "na venda de seus serviços".
Entenda o caso
No ano passado,Andre republicou em sua página no Instagram um vídeo do terapeuta holístico Jaime Bruning. Nas imagens,Bruning declarava que as causas da diabetes "são vermes que atacam o pâncreas".
Junto ao post,Lanca escreveu: "diabetes é verme" e "digite 'quero' para conhecer nosso programa completo de desparasitação". Na legenda,um segundo texto recomendava: "A desparasitação natural mata mais de 100 tipos de vermes,eliminando toda e qualquer possibilidade de doenças! Conheça nosso protocolo e apaixone-se".
Pouco tempo depois,o "Nunca vi 1 cientista" também lançou um vídeo,em que Ana Bonassa usava como ponto de partida a publicação feita pelo profissional de nutrição.
Cientistas são condenadas após refutarem nutricionista que associa diabetes a vermes
"Esse cara [Andre] bloqueou a gente,porque eu fui lá avisar que o que ele está espalhando é mentira",contava a bióloga logo nos primeiros segundos,em referência a um comentário feito na postagem de Lanca.
Na sequência,a especialista afirmava que "muitos outros canais" estavam "espalhando a mesma mentira" com o intuito de comercializar protocolos de desparasitação,motivo que a levava a alertar a audiência. Nas redes,ela e Laura acumulam mais de 870 mil seguidores combinados.
"Diabetes é basicamente um problema na sua insulina,que é uma chave que não consegue abrir a porta das células do seu corpo para o açúcar entrar nelas e ser usado como energia",descrevia a estudiosa.
Ao longo dos quase dois minutos de filmagem,ela não só criticava que fossem estabelecidas relações entre a doença metabólica e os vermes,como detalhava o que pode originar a diabetes e quais os danos dela à saúde.
"É um problema na ação e na quantidade de insulina,ou até ambos. E a consequência é o aumento do açúcar no sangue. Isso causa uma série de problemas,como amputações de membros,cegueira,doença no rins,problema no coração e pode levar à morte. E o que causa isso? São vários fatores,desde a sua genética até o seu estilo de vida. Mas nenhum desses fatores é verme",reiterava.
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Para exemplificar a gravidade da situação,Ana citava um episódio narrador por um seguidor. "Minha mãe acreditou nisso. Eu não consegui convencer minha mãe que não era verdade. A diabetes evoluiu muito e complicou a saúde dela. Poucos meses depois,ela faleceu",dizia a mensagem recebida pela bióloga.
"Eu sou doutora pela USP,cientista há 16 anos e também divulgadora científica. E eu estou aqui para ajudar vocês a não passarem pelo que esse moço passou. Ele perdeu a mãe,porque ela abandou o tratamento de diabetes e acreditou em protocolo de desparasitação",advertia Ana nas imagens.
Por fim,Bonassa mencionava que existem vários tratamentos para a diabetes,"que vão ajudar a sua insulina a trabalhar direito,para o açúcar sair do sangue e parar de causar problema". Apesar disso,repetia a dona do perfil científico,nenhum deles diz respeito à eliminação de parasitas.
"Não existe verme no pâncreas. Se você vir alguém propagando isso,denuncie e bloqueie. Porque isso é desinformação e está chegando forte para vender curso. 100% desses perfis [que estão] falando que doenças são causadas por vermes,estão vendendo curso. Mande esse vídeo para os seus familiares vulneráveis que podem cair em mais esse conto",recomendava a cientista.
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Processo judicial
Juntas,Ana e Laura deram início ao "Nunca vi 1 cientista" em 2018. O projeto de divulgação científica na web,que se limitava ao Facebook e ao Instagram no início da carreira como comunicadoras,foi ganhando visibilidade entre os internautas e se expandiu para outras plataformas.
— O vídeo chegou até a gente por meio dos seguidores,eles nos encaminham muitas coisas — relembra Marise.
Formada em Ciências Biológicas,Bonassa se dedicou ao estudo da doença no mestrado e no doutorado. Foi a partir dessa bagagem que surgiu a ideia de gravar o conteúdo. "Eu estudei a diabetes academicamente por mais de 16 anos,entendo um pouquinho sobre o tema",brinca a pesquisadora.
— Primeiro,comentei no perfil dele que aquilo era uma desinformação. Ele apagou o comentário e bloqueou o nosso perfil,nós ficamos sem nenhum tipo de comunicação. Então,resolvi fazer um vídeo explicando o que é a diabetes,quais os perigos de abandonar a medicação e desmitificando o tratamento com vermífugos.
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No dia seguinte,as duas foram surpreendidas como uma notificação extrajudical da equipe jurídica do nutricionista.
— A gente rebateu a intimação com uma contranotificação. Em seguida,ele já entrou com o processo. A gente teve um bom tempo para preparar a defesa. Isso nos levou a pensar que não tínhamos como perder a causa,porque é absurdo do absurdo — complementa Ana.
Há pouco mais duas semanas,no entanto,a dupla foi avisada de que o pedido de Andre havia sido apreciado pela Justiça,com uma condenação favorável ao nutricionista.
— Apagamos o vídeo original no mesmo dia Tudo o que comentamos,a partir desse momento,foi uma versão editada,que censura o rosto e os dados dele,porque foi isso que levou a nossa condenação — justifica a bióloga.
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Farmacêutica-bioquímica,Laura conta que não esperavam que o desenrolar dos fatos se desse da maneira como vem ocorrendo e garante que "foi uma grande surpresa".
— O nosso serviço alertava as pessoas para que elas não caíssem em desinformação. Mas ainda temos a chance de recorrer em segunda instância. Enquanto todos os trâmites do processo tenham sido finalizados,não temos que pagar nada. Nossos advogados estão confiantes que vamos conseguir reverter a decisão — adianta.
Como a colega de trabalho,Ana faz coro ao espanto.
— Nunca imaginei que ele [Andre] iria nos notificar,processar e que,depois,íamos perder o processo. Nós não acusamos ele de nada,não extrapolamos nenhum limite da liberdade de expressão. Também não lucramos em cima disso,o vídeo não teve fins comerciais — lamenta a bióloga.
Para Laura,a história é "uma inversão de valores",que ela classifica também como um "duro golpe para a divulgação científica". A preocupação com que o caso crie precedentes jurídicos diante de situações como essa,assegura,é uma das razões de as duas levarem o fato à público.
— É um precedente extremamente perigoso. Para mim,a frase mais problemática da sentença é a que a juíza diz que o nosso "vídeo informativo" causou prejuízos à venda de serviços dele. Não era essa a ideia? A [ideia] de que a gente expos uma desinformação e um esquema de venda de produtos e protocolos milagrosos,que prejudica a saúde das pessoas. Não era isso que deveria ser valorizado?
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Especializada em Biociências e Biotecnologia aplicada à Farmácia,Laura reforça que foi preciso incluir uma tese cientifica no processo,uma vez que o nutricionista " tentou sustentar a argumentação de que a diabetes é causada pelo verme".
— Nós não somos as primeiras,nem seremos as últimas divulgadoras científicas a serem processadas por alguém com ele. Mas falar sobre isso publicamente é importante,para que não se criem jurisprudências que eles vão usar contra todo mundo que tentar desmentir o que eles falam. Isso é muito perigoso,porque todo o combate à desinformação que a gente tenta criar no país vai por água abaixo.
Ao Tribunal de Justiça de São Paulo,Lanca argumentou que realizou uma denúncia dentro do próprio Instagram em que se opunha "ao uso de sua imagem e dados" na página de Ana e Laura. O pedido,porém,foi negado. Ele acrescenta que,o falecimento citado por Bonassa como exemplo,lhe imputava a "morte de seus clientes e seguidores".
O nutricionista Andre Luis Lanca e os advogados que o representam no processo foram procurados pela reportagem do GLOBO. Até a publicação desta matéria,não houve respostas. O espaço segue aberto para manifestação.
Entidades se pronunciam
Em conjunto,a Sociedade Brasileira de Diabetes,Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia,Associação Brasileira de Estudo da Obesidade e o Conselho Federal de Nutrição divulgaram uma nota em que defendem que "diabetes não é causado por vermes".
O Conselho Federal de Farmácia,por sua vez,demonstrou "perplexidade e preocupação" com o acontecimento e demonstrou apoio nominal as duas profissionais de saúde.
O que causa a diabetes?
O Ministério da Saúde afirma que a diabetes "é uma doença causada pela produção insuficiente ou má absorção de insulina,hormônio que regula a glicose no sangue e garante energia para o organismo". De acordo com o glossário "Saúde de A a Z",disponibilizado no site da pasta,"a insulina é um hormônio que tem a função de quebrar as moléculas de glicose (açúcar) transformando-a em energia para manutenção das células do nosso organismo".
As informações divulgadas pelo ministério apontam ainda que a síndrome metabólica "pode causar o aumento da glicemia e as altas taxas podem levar a complicações no coração,nas artérias,nos olhos,nos rins e nos nervos". Em casos mais graves,pondera o material,a doença "pode levar à morte".
A publicação do governo federal descreve que a "diabetes mellitus pode se apresentar de diversas formas e possui diversos tipos diferentes. Independente do tipo de diabetes,com aparecimento de qualquer sintoma é fundamental que o paciente procure com urgência o atendimento médico especializado para dar início ao tratamento."
Confira a nota das entidades na íntegra:
Em virtude da repercussão a respeito da pretensa informação acerca do diabetes ser causado por vermes,as três Sociedades Científicas – SBD,SBEM e ABESO,bem como o CFN - observaram a necessidade de dar esclarecimentos e orientações sobre o tema,dada sua relevância e impacto na vida da população.
O diabetes é uma doença altamente prevalente,atingindo mais de 537 milhões de indivíduos no mundo segundo a Federação Internacional de Diabetes,sendo 20 milhões de brasileiros acometidos,de acordo com a Sociedade Brasileira de Diabetes. Trata-se de uma condição clínica,crônica e sem cura,que pode ser acompanhada de complicações impactantes,como cegueira,insuficiência renal,amputações de membros inferiores,doenças cardiovasculares,entre outras,levando à mortalidade precoce sobretudo naquelas pessoas com controle inadequado da doença. Portanto,é de suma importância que essas pessoas estejam totalmente engajadas no tratamento adequado.
Têm sido veiculadas matérias na mídia sobre profissionais que defendem a ideia de que vermes estariam envolvidos no surgimento do diabetes,inclusive defendendo e,eventualmente,oferecendo tratamento antiparasitário para suposta cura da doença. Isso é um completo absurdo,sem qualquer embasamento científico. Além de ludibriar a população com informações enganosas,expõem as pessoas com diabetes à possibilidade de abandono dos tratamentos adequados,colocando-as em risco,inclusive de morte.
As Sociedades e o Conselho que aqui assinam este posicionamento reforçam a necessidade de buscar profissionais sérios e comprometidos com a ciência para o tratamento adequado das pessoas com diabetes,evitando práticas oportunistas e equivocadas,muitas vezes visando exclusivamente o lucro em detrimento da saúde desses indivíduos.
Confira a nota do Conselho Federal de Farmácia na íntegra:
O Conselho Federal de Farmácia expressa sua profunda perplexidade e preocupação com a recente condenação em primeira instância das Dras. Ana Bonassa e Laura Marise,responsáveis pelo portal “Nunca Vi 1 Cientista”,conforme amplamente noticiado pelos principais veículos de comunicação. Segundo a compreensão do CFF,o trabalho dessas profissionais,que defendem a Ciência e promovem informações corretas sobre saúde pública,é louvável e essencial para a sociedade.
O CFF acredita que a liberdade de expressão,dentro dos limites legais,é um direito fundamental e que a busca pela verdade científica é um dever de todos os profissionais de saúde. A disseminação de informações incorretas ou não embasadas em evidências científicas sobre questões graves como o diabetes pode ter sérias consequências para a saúde pública.
É importante destacar o papel dos profissionais de saúde na correção de informações errôneas e na promoção da educação em saúde. Ao desmentirem uma postagem que associava o diabetes à presença de vermes,as Dras. Ana Bonassa e Laura Marise estavam cumprindo sua função de maneira ética e responsável.
O CFF considera que ações que impeçam os profissionais de saúde de informar e orientar corretamente a população representam um retrocesso para a saúde pública e um risco para a sociedade,pois podem sinalizar,ainda que não seja essa a intenção,uma tolerância com o obscurantismo e o negacionismo científico.
Diante desse contexto,o CFF:
• Manifesta sua solidariedade às Dras. Ana Bonassa e Laura Marise;
• Reitera a importância da liberdade de expressão e da busca pela verdade científica;
• Reafirma seu compromisso com a promoção da saúde e do bem-estar da população;
• Incentiva todos os profissionais de saúde a atuarem com ética e responsabilidade na divulgação de informações sobre saúde.
Esperamos que este caso sirva como um alerta para a necessidade de proteger a liberdade de expressão e o direito à informação,especialmente em questões relacionadas à saúde pública.